-“Amor, tu viu o caos da manifestação em SP”
-“To vendo agora, não tenho opinião formada ainda.”
-“Por um lado a policia no Brasil é muito truculenta por outro o brasileiro não sabe se manifestar.”
Nunca, em toda minha vida, fui arrancado tão rapidamente de meu estado natural de imparcialidade. Pois aparentemente ontem vinagre era anthrax, promotor era homicida, câmera era bazuca, jornalista era criminoso, bala de borracha era doce, gás lacrimogênio era oxigênio e brasileiro reivindicava seus direitos, a unica coisa no “normal” era o batalhão policial que manteve sua estupidez e incompetência de sempre, só em uma escala maior.
Não importa a sua opinião sobre a validade da manifestação, se é pelos 20 centavos ou não (não é), se você acredita que as brutalidades que ocorreram em São Paulo, nosso suposto centro de modernidade, foram de qualquer maneira justificadas, feche esse texto agora, não há nada que eu possa falar que lhe ensine os básicos de empatia e convivência humana. Essa ideia só vai entrar na sua cabeça junto com um cassetete policial, brandido pela mão que você julga lhe proteger.
Porém ontem, mais que em qualquer dia de nossa história moderna, ficou claro o quão vazia é essa promessa de segurança, existe um abismo atrás da paisagem falsa, separando a policia e os cidadãos, e ontem um rombo nos mostrou o outro lado, e o que vimos foi um fantasma do passado. Um esqueleto no armário que se recusa a permanecer morto.
As repetições por muito tempo caíram em ouvidos surdos, nossa policia é mal treinada, psicologicamente despreparada, mal selecionada, desequipada, mal paga, não incentivada e uma boa parte, corrupta. Pois ontem essas verdades inconvenientes foram exemplificadas diante de olhares alertas e sentidas em golpes doloridos.Morei por um bom tempo no Canadá, e presenciei mais de um protesto nesse tempo, a policia aqui é considerada a melhor do mundo, vocês acham que esse tipo de coisa acontece.
Em primeiro lugar, um reconhecimento, o manifestante aqui é mais contido, depredações do patrimônio público são raras, e quando ocorrem, são obra de poucos, mas tenha certeza que a policia não vai rachar a cabeça de ninguém por pichar um ônibus (ou pelo porte de vinagre). As regras de engajamento da tropa de choque canadense são claras e seguidas a risca, eles assumem uma posição predominantemente defensiva.
O uso de balas de borracha é raríssimo aqui pelo alto risco de ferimentos graves que ela causa ( o termo correto aqui é “munição menos letal” ao contrário de “não letal), balas de borracha possuem uma distancia mínima recomendada de 20 metros, abaixo disso o risco é considerado muito alto e nunca são miradas acima da cintura, e mesmo assim devido a sua tendencia de ricochetear e se tornar impreviseviveis seu uso é considerado último recurso. O gás lacrimogenio é apenas usado para dispersar grupos com o intuito de prender figuras chaves que estejam incitando desordem, e SIM é possível diferenciar o manifestante pacífico do vândalo, não só fazem isso o tempo inteiro fora do Brasil como essa é toda a função dos policiais infiltrados na massa. O spray de pimenta é apenas usado contra manifestantes que estejam tentando agredir a policia ou que estejam resistindo a prisão e o cacetete é apenas usado contra multidões que tentam derrubar a linha policial.
Notaram o padrão? A palavra chave é proteção, a tropa de choque não sai ativamente perseguindo a população pois isso não é apenas antiético como derruba todo o propósito de contenção de danos, a população em fuga apenas causa mais “transtorno” ao funcionamento da cidade, o que comprova que o que aconteceu não passou de pura e insensível brutalidade.
Mas não é necessária uma analise de metodologia para perceber isso, qualquer pessoa com um par de olhos ( ou apenas um depois de alguns casos graves de “bala de borracha no olho ontem) podem ver nas imagens divulgadas, ou pessoalmente no caso de alguns povres valentes) as expressões completamente insanas e enfurecidas dos funcionários de repressão. Esses não são os rostos de alguém apenas cumprindo seu trabalho, são expressões de ódio primitivo, resquícios de nossas origens animalescas.
Esse é o tamanho do abismo entre policiais e a população, são como nações diferentes em um conflito medieval, não existe empatia para nenhum dos lados. Um policial do fórum foi pego sozinho e quase foi linchado aos gritos de “Pega!Mata!” , os policiais a paisana, os mesmo citados antes, responsáveis por identificar vândalos foram instruídos a quebrar suas próprias viaturas e a incentivar agressões com o intuito de justificar a brutalidade, como se estivessem em uma operação de sabotagem contra um inimigo distante, e certamente os bravos policiais que denunciaram a conduta esdrúxula de seus colegas serão execrados como “traidores”.
Isso é proposital, nossos governantes mantém os policias marginalizados para evitar que criem vínculos, por isso eles são mal pagos e obrigados a serem vizinhos das pessoas que um dia terão de prender. Muitos policiais vestem a farda apenas na delegacia para não serem identificados pela vizinhança, qualquer pessoas que já foi abordada sabe como leis “brotam” quando o policial está intencionado em executar uma prisão, fruto de uma ignorância do verdadeiro conhecimento legal, vide ” porte de arma branca” que não existe em nenhum lugar na legislação como crime, mas pode ser causa de prisão se você portar uma chave de fenda, ou melhor ainda, o caso do vinagre que está circulou nos últimos dias, onde o jornalista da Carta Capital Piero Locatteli foi preso por portar vinagre, o qual é usado para reduzir o efeito do gás lacrimogênio, no Canada a própria policia recomenda que façam isso mas no Brasil a defesa é crime sem ser, o Capitão Toledo (guardem o nome) inventou direitos legais na hora, como de costume, e arrastou o jornalista para a cadeia sem nenhuma acusação formal, o cômico é a desculpa esfarrapada dada mais tarde, que não havia certeza de que tipo de substância era. BALELA, na hora de prender foi claramente por causa do vinagre e em segundo lugar, se um dia terrorismo virar pauta no Brasil talvez possam tentar essa de novo, até lá, aparentemente é demais pedir que PM siga a lei.
Aliás essa é a uma das múltiplas chaves do problema, Policia MILITAR, enquanto se manter a idéia de que a população é um inimigo a ser vencido esse problema só tende a piorar. Melhor ainda, enquanto o exército for incapaz de cumprir seus deveres, como controle de fronteiras, ele se beneficiaria muito de manter o bedelho longe da vida civil. E enquanto o policial de bem, que felizmente existe, tiver vergonha de vestir sua farda, sempre haverá algo errado com esse país.
E como qualquer situação nesse país, o buraco é muito mais fundo que imaginamos, a quebra de símbolos e imagens resultantes mostraram a face podre por baixo da máscara de porcelana. Jornalistas, representantes da verdade e do direito a informação foram divididos, os agredidos por exercerem sua função e os que se resignaram com seus patrões e cuspiram mentiras torpes, altos representantes da lei e da ordem incentivam a barbárie, policiais jurados a proteger a ordem semearam o completo caos. E honestamente, o choque após o furacão foi tão chocante quanto o andamento da situação. Declarações como “Jornalista apanhar é risco da profissão”, que “Vinagre pode virar bomba“, que a policia “NÂO SE RESPONSABILIZAVA” e de que “NÃO HAVIAM CIVIS FERIDOS“, eu me senti ENOJADO. Honestamente, amo muito o Brasil, viajo muito mas sempre volto para ele, mas eu estou cansado e estressado de morar em um país onde apenas vemos nosso dinheiro suado se esvair entre as falhas do sistema, não há fluxo, não há retorno, o coração desse país não bate mais.
Mas entre tanto horror e insanidade, uma luz brilhou, um único ponto positivo em um mar de estupidez. O gigante adormecido bocejou e se revirou em seu berço esplendido, e talvez esteja próximo de acordar de seu sonho ruim e sacudir a poeira. Ao ver o nível de indignação social senti esperança como nunca senti, no país do conformismo finalmente temos a oportunidade de começar uma revolução, e hoje, mais que nunca, senti orgulho de ser jovem e universitário.
“Quando o povo teme o governo há tirania, quando o governo teme o povo há liberdade.” – Thomas Jefferson